terça-feira, 24 de janeiro de 2017

MORTE ÍNTIMA


(Me perdoem os que acham que me repito: eu sei que já disse, e escrevi, muitas dessas coisas. Mas eu retomo aqui, porque não me cansei delas – e porque a cada dia me parecem vivas, e reais) by Lya Luft – do livro O Tempo É Um Rio Que Corre

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O Bestário, ainda lembro do livro que me foi deixado por um primo que só via durante as férias, lá nos tempos da carochinha. Lembro da fascinação ao conhecer o universo daquele escritor, Cortázar. Devo ter gasto o livro de tanto ler aquelas mágicas histórias. Lembro do calor que senti quando li um conto e estava dentro de um ônibus seguindo uma estrada de chão, poeira, calor, náusea pelo perfume das flores que uma mulher carregava. O ponto final era o cemitério. Agora penso, sempre a morte, sutil, silenciosa, cruzando meu caminho. Mas desci antes, na poeira, no Sol, na estrada. Esta lembrança é de muito tempo depois de nunca mais encontrar aquele primo. Acaba a infância, e nós procuramos outros rumos menos infantis. Era meu terceiro emprego conseguido por um tio, em menos de um mês. Procurei o endereço, adentrei uma pequena ruela com uma seta onde estava escrito: Rua Gris. Justo a que procurava, precisava desse emprego, não poderia falhar com meu tio mais uma vez, um cliente dele haveria de simpatizar comigo. Achei o número e a casa, que me pareceu um pouco assustadora, tão grande, imponente, já deve ter tido seus áureos tempos , agora é apenas uma imensa casa assustadora. Só precisava agradar o cliente de meu tio, lendo algo que ele quisesse...Aguardei em uma sala imensa, com cortinas puídas, assoalho que fazia um estranho ranger, foi quando percebi que alguém vinha ao meu encontro. Lentamente, como se medisse os passos, o tempo. Parou na grande porta enquanto me olhava, analisava. Meu coração acelerou, e pelo olhar já fiquei angustiado. Será que ninguém me quer ? Continuou me olhando e me estendeu a mão. Quebrou o gelo. Disse-me que precisava de poesia que falassem em morte, pois era a única linguagem que o satisfazia. Falei que achava que a poesia salvaria o mundo. Olhou-me com um sorriso malicioso nos lábios e disse-me. Quanta pretensão. Baixei os olhos e insisti que acreditava de verdade. Um silêncio. Então me disse, começa com Augusto dos Anjos. E prontamente recitei meu favorito:



Vês! Ninguém assistiu ao formidável

Enterro de tua última quimera.

Somente a ingratidão – esta pantera

Foi tua companheira inseparável!



Acostuma-te à lama que te espera!

O homem, que , nesta terra miserável,

Mora, entre feras, sente inevitável

Necessidade de também ser fera.



Toma um fósforo. Acende teu cigarro!

O beijo, amigo, é a véspera do escarro,

A mão que afaga é a mesma que apedreja.





Se a alguém causa inda pena a tua chaga,

Apedreja essa mão vil que te afaga,

Escarra nessa boca que te beija!



Os Versos Íntimos saíram de minha boca como quem entrega o ouro ao inimigo, mas não poderia evitar, após lançados os versos ao som concreto, nada mais será desfeito, então o mundo será salvo. No sétimo dia de leituras, meu tio me chamou e então explicou o sentido de meu trabalho. Eram leituras no leito de morte, eram pessoas condenadas a morte por algum motivo. E eu as fazia felizes por sentirem uma voz, uma outra voz acompanhando, lendo, falando, que não a voz da própria morte, que já se manifestava em seus leitos há muito tempo. Tenho um trabalho, nem triste, nem alegre, um trabalho em que tento impor minha voz, sobre a própria voz da morte.

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

O SORRISO DA MORTE


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É apenas uma pancada de chuva de verão, logo passa; pensei em minha avó que costumava dizer da rapidez com que a chuva de verão chega e vai embora. Agora, eu , aqui no meio do caminho sinto as primeiras gotas de uma água gelada e logo estou encharcado, com frio e feliz, pois longe do olhos de minha avó, caminhava no meio fio, que formava uma corredeira. Outras crianças apareceram de todos os lados, parecia que aquele meio fio era o rio principal das brincadeiras. Como não gostei da companhia – meu destino é andar só como o Kung Fu de David Carradine – segui com meus passos molhados, observando as árvores, que pareciam bem felizes, talvez porque o vento fosse fraco e a chuva abundante. Pensei: É apenas uma pancada de verão. Com os óculos embaçados tateava a cada passo que dava, quando percebi a água estava em meus joelhos, olhei em volta e estava ilhado, só eu e um mundo de água. Pensei no dilúvio e nos cinco minutos que se leva para morrer afogado. Embora a morte sempre estivesse junto de mim, me seguindo, se esgueirando por entre paredes e postes e pessoas, mas nunca me perdendo de vista. Eu não sabia, até aquele momento em que a água ultrapassava meus joelhos, e eu perdido sem saber para que lado seguir. Foi então que a vi inteira pela primeira e talvez última vez. Não me pareceu assustadora como sempre me pintaram, não tinha uma foice, seu rosto não era uma caveira, e suas vestes não eram negras. Pelo contrário, me pareceu gentil ao indicar um caminho que não conseguia ver, face a água, que a estas alturas passava de minha cintura. Quando cheguei perto, ela me sorriu, pensei: o sorriso da morte. Não tive medo, nem a sensação de enfraquecimento para a morte, pelo contrário, me senti vivo e feliz, pois atravessei aquele mar de água de verão na rua, como um cego, tateando o chão, apenas atendi o chamado da morte, que desapareceu assim que estava numa calçada seguro. Pensei em minha falecida avó, então percebi que não era a morte, mas um anjo, com um largo sorriso, que me trazia mais uma chance de viver e tentar ser feliz.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

É MELHOR FAZER UMA CANÇÃO

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    Elza Soares e Caetano

  • LÍNGUA


  • Gosto de sentir a minha língua roçar
    A língua de Luís de Camões
    Gosto de ser e de estar
    E quero me dedicar
    A criar confusões de prosódia
    E um profusão de paródias
    Que encurtem dores
    E furtem cores como camaleões
    Gosto do Pessoa na pessoa
    Da rosa no Rosa
    E sei que a poesia está para a prosa
    Assim como o amor está para a amizade
    E quem há de negar que esta lhe é superior
    E quem há de negar que esta lhe é superior
    E deixa os portugais morrerem à míngua
    Minha pátria é minha língua
    Fala Mangueira
    Fala!
    Flor do Lácio Sambódromo
    Lusamérica latim em pó
    O que quer
    o que pode
    Esta língua
    (3X)


    Vamos atentar para a sintaxe paulista
    E o falso inglês relax dos surfistas
    Sejamos imperialistas
    Cadê? Sejamos imperialistas
    Vamos na velô da dicção choo de Carmem Miranda
    E que o Chico Buarque de Hollanda nos resgate
    E Xeque-mate, explique-nos Luanda
    Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo
    Sejamos o lobo do lobo do homem
    Sejamos o lobo do lobo do homem
    Adoro nomes
    Nomes em ã
    De coisa como rã e ímã...
    Nomes de nomes como Scarlet Moon Chevalier
    Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé, Maria da Fé
    Arrigo Barnabé

    Incrível
    É melhor fazer uma canção
    Está provado que só é possível filosofar em alemão
    Se você tem uma idéia incrível
    É melhor fazer uma canção
    Está provado que só é possível
    Filosofar em alemão
    Blitz quer dizer corisco
    Hollywood quer dizer Azevedo
    E o recôncavo, e o recôncavo, e o recôncavo
    Meu medo!

    A língua é minha Pátria
    eu não tenho Pátria: tenho mátria
    Eu quero frátria

    Poesia concreta e prosa caótica
    Ótica futura
    Samba-rap, chic-left com banana
    Será que ele está no Pão de Açúcar
    Tá craude brô, você e tu lhe amo
    Qué que'u faço, nego?
    Bote ligeiro
    arigatô,arigatô
    Nós canto falamos como quem inveja negros
    Que sofrem horrores no Gueto do Harlem
    Livros, discos, vídeos à mancheia
    E deixa que digam, que pensem,que falem

    by CAETANO VELOSO

    terça-feira, 10 de janeiro de 2017

    NO FUNDO DOS OLHOS


                  Resultado de imagem para O TEMPO

                    Demorei para perceber que não havia mais nada a ser dito, apenas semear as sementes de melão e esperar pela fruta. Haverá um tempo, entre a semeadura e a colheita. O tempo da espera e o tempo da fome. As loucas palavras que deixaram de ser ditas, os olhos que olhavam no fundo dos olhos do outro, que calava-se. Um abismo de silêncios nos manteve afastados, mesmo quando ainda estávamos juntos, e já nos perdíamos...nossos passos para lados opostos, nosso destino sendo traçado e dizendo que não haverá união nem final feliz. Tropeços e quedas e ódios e vazios. A náusea impediu o beijo da morte ou de amor (mas o amor não existe, nunca existiu) . Será ? Sempre negaremos, tudo não passou de um acidente temporal. O tempo gozando de nossa cara, criando expectativas e entregando ilusões.

                   Gostamos de nos iludir, ficar de fora e não se comprometer. Também gostamos de furar fila, entrar antes do outros e somos por demais invejosos. Subornamos e somos subornados, em nome de mais conforto, esquecendo-se do mal provocado para si e os outros tantos milhões de brasileiros, abandonados a própria sorte (ou seria azar?).

                   O corpo virou moeda de troca e interesses e desumanidade e, assim, perdemos nossas filhas para o mundo e nossos filhos aumentando cada vez mais a caótica vida carcerária neste país; onde quem entra ou se aperfeiçoa no crime ou é morto (em menos de 15 dias quase cem mortos nos presídios do norte). As cidades brasileiras nunca viveram um

    período tão perigoso, tanto na rua como dentro de nossas casas, não temos mais segurança, e contamos com a sorte, ou Deus, que estará sempre de braços abertos para

    nós, ou não.

                   Enquanto o mundo se destrói, tento respirar e ficar quieto nesta minha ilha de isolamento e solidão. Por vezes penso não suportar tudo isso ou meu nada ou a falta de teu olhar, que não olhava o fundo dos meus olhos, então me calei.