terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

CAMINHANDO COM OS MORTOS




Era uma tarde quente, muito quente, como há muito não se via, não se sentia, não se morria...Os termômetros passavam fáceis pelos 40 graus. As plantas, estáticas, desbotadas, secas. Plena tarde e a cidade está deserta, como numa era pós apocalíptica, sem sobreviventes, sem amanhãs. Eu e minha mãe caminhávamos com os mortos desde quando amanheceu o dia, pois antes de nascer o primeiro raio de Sol, já estávamos colhendo as últimas flores do jardim, que sobreviviam já quase sem cor, com um resto de vida que se acabava, assim que eram colhidas.
Com o buquê que conseguimos fazer, partimos para o cemitério, eu, minha mãe, as flores e os mortos de nossas lembranças. Poucas quadras nos separavam do cemitério, consegui-amos vê-lo entre a terra e o Sol escaldante, como numa lente desfocada e embaçada, como num tempo perdido entre o espelho e o passado.
Poderíamos ter saído de um conto de Cortázar, personagens insólitos e obstinados que surgem dentro de um ônibus  abafado de calor e poeira, espíritos perdidos, transbordando de saudades...mas não, éramos eu e minha mãe à caminho do cemitério, caminhando ao encontro de nossos mortos...
Minha mãe dizia que nos janeiros tínhamos de vê-los em sua última morada. Visitar o cemitério nos janeiros se tornou um ritual meu e de minha mãe, pois éramos ligados fortemente por nossos mortos. Minha mãe visitava sua única irmã e eu minha única tia, ela seus pais, e eu meus avós. Existiam outros mortos queridos, que faziam a corte em nossas visitas, todos querendo atenção, uma reza, uma vela, uma flor, uma lembrança.
Naquela tarde muito quente de janeiro, minha mãe e eu chegamos ao cemitério para cumprir nossa caminhada com os mortos.



14 comentários:

  1. Querido, sou uma pessoa q ainda reverencio meus mortos ... todos os meses visito-os e reverencio suas memórias ... não q esteja apegado a dores de perdas ou a passado, mas valorizo e cultuo tudo aquilo q pessoas queridas me legaram e me ajudaram na construção do meu SER ...

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    1. Meu rei, meu querido amigo Bratz, também não fico apegado num sofrimento que nunca terá fim, para minha sanidade, e acredito que eles (meus mortos) não iriam gostar, mas por outro lado, no meu coração tenho esta necessidade, e é por cultura, mas principalmente por mim, a forma que tenho de lidar melhor com o que não gostaria de perder. O respeito, meu caro, os respeito muito, e os amo também, mas temos de seguir...querido amigo, muito bom saber que preservamos valores e laços parecidos em nossas vidas. Meu carinho meu respeito e meu abraço.

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  2. Verdadeiramente a dor da saudade nos acompanhará sempre..ainda mais quando os nossos mais queridos se foram...mas os bons sentimentos nos dão uma certa paz...adorei tudo por aqui.abraços meus.

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    1. Olá Lia, seja muito bem vinda neste espaço...é, existem coisas impossíveis de serem esquecidas, às vezes para o nosso bem seria melhor, mas como arrancar amores eternos cravados em nossa memória e coração ? Por isso, tento estar o mais próximo, embora longe, de meus pais, meu bem mais precioso hoje e sempre, mas a vida nos pede que sigamos, temos de trabalhar, construir nossas vidas, como eles querem, e nem sempre é possível estar próximo e aí entram os bons sentimentos, estes nos acalmam a alma. Obrigado pela visita e comentário tão pertinente. Já estou navegando em teus 4 blogs. Carinho resdpeito e abraço.

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  3. Bom dia...
    Parece que estou lendo um livro antigo, aqueles de época dos quais gosto tanto de ler. Beijo meu querido e muito sorte na sua caminhada pela vida...

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    1. Olá querida Gheni, saudade sempre...obrigado por palavras tão carinhosas, de fato ocorre isso com minha mãe e eu, mas a forma que consegui colocar as palavras e sentimentos beira a literatura, a um tipo de literatura que tento, meio barata mas acredito ser algo de fato meu. E assim, escrevendo, trocando idéias contigo, por exemplo, sigo minha caminhada, obrigado. Carinho respeito e abraço.

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  4. Amigo Jair, parabéns por esta ótima cronica. Texto comovente e perfeito. Nota mil.
    Chamou-me a atenção o parágrafo: Com o buquê que conseguimos fazer, partimos para o cemitério, eu, minha mãe, as flores e os mortos de nossas lembranças, pois, não se o amigo crê na doutrina espírita, mas, eu adepto da doutrina, acredito, que quando vamos aos campos santos levar flores aos nossos entes queridos, eles vão junto conosco pelo caminho e depois nos acompanham na volta...
    Ah, gostei também da alusão ao grande Cortázar.,
    Um abração. Tenhas um ótimo dia.

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    1. Meu poeta Dilmar, que maravilha este teu comentário, obrigado pela nota rs, mas realmente gostei do que percebeste...a vida, as palavras nos levam por caminhos diferentes do que, em tese, buscamos e aí está o milagre. Não sigo a doutrina espírita, mas me acredito espiritualista, e é uma matéria que me interessa também, tenho algumas leituras. O sentido como os espiritos entram no texto é neste sentido mesmo, mas não pensava na dourrina quando escrevi, mas ela está intrínseca em mim. A companhia deles, pode ser uma saudade de sempre que por vezes é presente demais. Existe um conto do Cortázar em seu livro Bestário, se não me engano, e é uma situação que alguém vai ao cemitério de ônibus, e é um dia muito quente e eu gosto da literatura latino americana, essa coisa meio fantástica e tão íbero...obrigado Dilmar, muito obrigado. Meu carinho meu respeito e meu abraço.

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  5. Parece clichê mas é fato: aqueles que nos são caros vivem pra sempre. Vivem em nós. Não assombram, mas também não nos deixam. Bela escrita, caro Jair!!! Abração!

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    1. Meu precioso amigo Fred, às vezes penso que a vida é um clichê rs...mas tens razão, o amor não se acaba, ele segue ad infinitum na memória, no coração. Meu amigo tua presença é sempre prazerosa pra mim e visitar teu blog é um passeio que sempre faço ao me conectar na net, e é sempre delicioso rs. Meu carinho meu respeito e meu abraço, caríssimo Fred.

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  6. Amigo Jair, chamou muito a minha atenção isso:
    "Existiam outros mortos queridos, que faziam a corte em nossas visitas, todos querendo atenção... "
    Interessante isso, os vivos querem sempre atenção, parece uma extensão da vida, quando morrem, me pareceu.
    Atenção é carinho, amor, afetos. E nunca é o suficiente, penso que continuam a clamar por isso dentro da gente. Mesmo mortos.
    Seu texto é lindo, porém bem triste... Mas nem de coisas engraçadas se vive, não é?
    Grande abraço, querido amigo.

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    1. Minha querida amiga Tais, teu olhar sempre me trás algo que estava ali e eu não conseguia ver...gosto disso, do querer atenção vivo e depois de morto e talvez seja o elo, quem sabe, uma forma de manter vivo o amor, nós desse lado e eles do outro. É uma matéria triste sim, mas não senti pura tristeza quando minha mãe e eu fomos ao cemitério, dava uma espécie de alivio, por ver minha mãe pensando fortemente nos que restam em sua memória e coração, e por mim, por reverenciar mortos queridos e ter minha mãe viva comigo, meu presente de Deus. Querida amiga, muito obrigado pela carinhosa presença, sou muito feliz com tua amizade. Carinho respeito e abraço.

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