(Me
perdoem os que acham que me repito: eu sei que já disse, e
escrevi, muitas dessas coisas. Mas eu retomo aqui, porque não
me cansei delas – e porque a cada dia me parecem vivas, e reais) by
Lya Luft – do livro O Tempo É Um Rio Que Corre
O
Bestário, ainda lembro do livro que me foi deixado por um
primo que só via durante as férias, lá nos
tempos da carochinha. Lembro da fascinação ao conhecer
o universo daquele escritor, Cortázar. Devo ter gasto o livro
de tanto ler aquelas mágicas histórias. Lembro do calor
que senti quando li um conto e estava dentro de um ônibus
seguindo uma estrada de chão, poeira, calor, náusea
pelo perfume das flores que uma mulher carregava. O ponto final era o
cemitério. Agora penso, sempre a morte, sutil, silenciosa,
cruzando meu caminho. Mas desci antes, na poeira, no Sol, na estrada.
Esta lembrança é de muito tempo depois de nunca mais
encontrar aquele primo. Acaba a infância, e nós
procuramos outros rumos menos infantis. Era meu terceiro emprego
conseguido por um tio, em menos de um mês. Procurei o endereço,
adentrei uma pequena ruela com uma seta onde estava escrito: Rua
Gris. Justo a que procurava, precisava desse emprego, não
poderia falhar com meu tio mais uma vez, um cliente dele haveria de
simpatizar comigo. Achei o número e a casa, que me pareceu um
pouco assustadora, tão grande, imponente, já deve ter
tido seus áureos tempos , agora é apenas uma imensa
casa assustadora. Só precisava agradar o cliente de meu tio,
lendo algo que ele quisesse...Aguardei em uma sala imensa, com
cortinas puídas, assoalho que fazia um estranho ranger, foi
quando percebi que alguém vinha ao meu encontro. Lentamente,
como se medisse os passos, o tempo. Parou na grande porta enquanto
me olhava, analisava. Meu coração acelerou, e pelo
olhar já fiquei angustiado. Será que ninguém me
quer ? Continuou me olhando e me estendeu a mão. Quebrou o
gelo. Disse-me que precisava de poesia que falassem em morte, pois
era a única linguagem que o satisfazia. Falei que achava que a
poesia salvaria o mundo. Olhou-me com um sorriso malicioso nos lábios
e disse-me. Quanta pretensão. Baixei os olhos e insisti que
acreditava de verdade. Um silêncio. Então me disse,
começa com Augusto dos Anjos. E prontamente recitei meu
favorito:
Vês!
Ninguém assistiu ao formidável
Enterro
de tua última quimera.
Somente a
ingratidão – esta pantera
Foi tua
companheira inseparável!
Acostuma-te
à lama que te espera!
O homem,
que , nesta terra miserável,
Mora,
entre feras, sente inevitável
Necessidade
de também ser fera.
Toma um
fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo,
amigo, é a véspera do escarro,
A mão
que afaga é a mesma que apedreja.
Se a
alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja
essa mão vil que te afaga,
Escarra
nessa boca que te beija!
Os Versos
Íntimos saíram de minha boca como quem entrega o ouro
ao inimigo, mas não poderia evitar, após lançados
os versos ao som concreto, nada mais será desfeito, então
o mundo será salvo. No sétimo dia de leituras, meu tio
me chamou e então explicou o sentido de meu trabalho. Eram
leituras no leito de morte, eram pessoas condenadas a morte por algum
motivo. E eu as fazia felizes por sentirem uma voz, uma outra voz
acompanhando, lendo, falando, que não a voz da própria
morte, que já se manifestava em seus leitos há muito
tempo. Tenho um trabalho, nem triste, nem alegre, um trabalho em que
tento impor minha voz, sobre a própria voz da morte.