MONÓLOGOS DA SOLIDÃO – ENSAIO
Acordou como ensaiado há muitos dias, não era ele nele, era a criação que na noite faria sua estréia nos palcos...o chamarei de Dele, pois não sou eu, não é ele, é a criação que a nove meses esta evoluindo e tornou-se Dele. Pesado, com seus 50 anos de extrema solidão. Com esforço senta-se na cama, e como quem não acredita põe o rosto entre as mãos depois de um longo suspiro...no quarto não possui muitas coisas, assim como o cenário...Sai caminhando lentamente, apoiando-se numa bengala. Naqueles nove meses levantava-se cedo e fazia esta caminhada na pracinha em frente a sua casa, observando as árvores que estranhamente começavam a perder a cor, quando um estranho vento soprou mais profundo. Parou para arrumar a manta no pescoço...então sentiu, lembrou, começava, exatamente agora às 8 horas da manhã, o outono. Um calafrio percorreu sua espinha, agora já acreditava estar dentro ou fora, mas possuído pelo personagem, estava na criação do papel, segundo Stanislavski. Após arrumar a manta no pescoço e tentar ouvir o que o vento soprou em seu ouvido, não conseguiu...fecha os olhos, levanta a cabeça – cena que se repetirá por várias vezes logo mais a noite – aproveita para praticar mais um exercício. Com a cabeça em direção ao céu, olhos fechados, deixou-se invadir pelo vento e percebeu que ele sussurrava pedaços de poemas vindos de um sonho em que uma menina chamada Rayuela, jogando amarelinha na calçada, e a cada salto, cada número, ela sorria e gritava um pedaço de poesia. Lentamente abre os olhos, e se depara com um céu azul como nunca havia visto antes, não antes de fechar os olhos, mas antes de sua vida, antes da existência do personagem, este que se interpreta todos os dias, após acordarmos, para seguirmos com nossas vidas... logo uma nuvem passou em forma de ovelha, mas não se desconcentrou, apenas deixou a menina seguir o animal, pois parecia correr para estar com ele, parecia se deliciar com infinitude do azul, podia ver no seu rosto a paz que sempre procurou, a poesia doce e suave, ela só poderia se chamar Rosanazul. Baixou a cabeça e continuou a caminhada,sentindo-se mais leve, apesar da idade, dos cabelos brancos, da dor nas costas, que o obrigava a usar a bengala. Parado agora em frente ao portão de sua casa, repara as flores que não havia notado há muito tempo, olha pela janela para dentro da casa, onde percebe um vulto olhando para Dele, através da janela...as luzes foram baixando, apenas um foco luminoso claro opaco em seu rosto, apressou-se em abrir o portão, mas a idade e as dores o impediam de correr, incrédulo e feliz balbuciou algumas palavras adentrando a casa: Dentre todas as Almas já criadas – Uma – foi minha escolha – Quando Alma e Essência – se esvaírem – E a Mentira – se for – Quando o que é – e o que já foi – ao lado – Intrínsecos – ficarem – E o Drama efêmero do corpo – Como Areia – escoar. As luzes se apagam; talvez volte a dormir mais um pouco, afinal, precisa estar bem descansado para a estréia.
ps. Outro post iluminado por meu senhor do teatro, Ivo Bender...