quarta-feira, 14 de novembro de 2018

ANGÚSTIA DAS PEQUENAS COISAS RIDÍCULAS


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Poema em Linha Reta




Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida…
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.



 by Fernando Pessoa




ps.
O mundo me dá vontade de chorar, ao ver crianças mortas em guerras, mortas de fome, caminhando errante com seus pais pelo mundo a procura de abrigo, que não existe mais. Quase chorei no último capítulo de uma novela, o amor correspondido me faz chorar de alegria, não o amor que tive, só eu o tinha, só eu amava e sofria, só eu...mesmo amando o que não me amava, eu chorava. Não se escolhe. Mas o que são poucas lágrimas comparadas ao pranto das mães que perdem seus filhos pela violência, pela intolerância, pelo tráfico… Mas não consigo chorar por mim, que morre um pouco mais a cada dia, a cada noite insone. O mundo, este que está aí, não é o mundo que escolhi, mas o mundo onde nasci e passei a viver, até aqui. Minhas dúvidas, meu coração partido e seco, minha vida, minha morte...a cada aniversário mais próximo me sinto dela, mais envolvido. Angústia por coisas tão pequenas, diante de toda a humanidade, é nada.


2 comentários:

  1. Respostas
    1. Caro amigo Rui Pires, Fernando Pessoa sempre estará em minha cabeceira, sempre preciso ler e descobrir e me redescobrir com seus poemas...nossa o outoino europeu tá congelante, que bom, assim o abraço aquece. Carinho respeito e abraço.

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