quinta-feira, 19 de maio de 2016

SOB A PELE DAS PALAVRAS HÁ CIFRAS E CÓDIGOS


A Flor e a Náusea



Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Vomitar este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.


publicado em Antologia Poética – 12a edição – Rio de Janeiro: José Olympio, 1978, ps. 14,15 e 16)

8 comentários:

  1. Beleza de poesia trouxeste pra compartilhar! Linda! abraços, chica,tudo de bom!

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    1. Chica do Céu, minha adorável amiga, bela, de uma beleza dolorida por vezes, uma beleza verdadeira e não tão desenhada aos nossos sonhos como poderíamos imaginar, mas beleza, uma beleza feia de uma flor, se é que é possível existir beleza feia em uma flor...uma belíssima poesia minha amiga, e obrigado por faze-la mais poesia ao lê-la neste blog. Carinho respeito e abraço.

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  2. Soneto-acróstico
    Essas palavras!

    Cada palavra se expõe e também esconde
    Inserida no contexto de nem saber aonde
    Frases e palavras significam isto ou aquilo
    Refletem o conteúdo de acordo com estilo.

    Apenas o termo pergunta outro responde
    Sem nobreza de rei, rainha ou visconde
    E a um termo raivoso responde tranquilo
    Conquanto no significado não tenha grilo.

    Ódio, desprezo, camaradagem, até amor
    Decerto, convivem em meio a muita paz
    Imaginação e criatividade, seja o que for
    Gozam de intimidade que não se desfaz.

    O tédio não está onde furou asfalto a flor
    Se há códigos e cifras a palavra é sagaz.

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    1. Meu querido senhor de todas as palavras, meu amigo Jair Lopes, sou tão agradecido por tuas visitas, fico mais que feliz, me sinto muito bem prestigiado, agradecido...assim este poemas se apresenta para mim:
      "Cada palavra se expõe e também esconde
      Inserida no contexto de nem saber aonde
      Frases e palavras significam isto ou aquilo
      Refletem o conteúdo de acordo com estilo."
      Como se entre as palavras, entrelinhas, poderíamos redescobrir os códigos perdidos do coração ou da mente, do caminho que fazemos e criamos todos os dias. Um canto ao instante que forma um tempo, uma lembrança. Somos feitos de palavras, que designam sentimentos, somos flor da pele e somos cascudos como lima asfalto, e mesmo assim nascem flores na rachadura de um coração, assim como vemos flores nascerem no asfalto. Gosto também de ver como veias, correndo por nosso corpo, me disseram uma vez as veias da américa latina, estradas, caminhos a descobrir. Obrigado por ler comigo este poema meu bom amigo Jair Lopes. Carinho respeito e abraço.

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  3. Oi, Jair, lindíssimo poema, profundo, conflitante. O que há dentro de nós aparece e o que existe lá fora nos conturba. Belo, belo. Reflexão sobre nossos valores também está implícito.
    Li, voltei, reli. É um poema para ir degustando e pensando, algo como se bebêssemos um velho e valioso vinho.
    (a foto não aparece, o que foi uma pena!) Não sei se é só no meu computador.
    Abraços, querido amigo.

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    1. Minha querida amiga Tais, eu sempre atrasado, o tempo passando e eu tentando viver os dias, mas cá estou, sempre muito agradecido por tua presença, tão importante para mim, para este blog...assim tenho feito com este poema, degustado e pensado, como um valioso vinho, um inebriante perfume (a imagem é uma flor nascida no asfalto com nuvens ao fundo). “porém meu ódio é o melhor de mim”, o que me mantém vivo, buscando o amor amor para anular este ódio. É um poema tão completo e ao mesmo tempo semeia a dúvida dentro de nós, o que somos e poderíamos ter sido, onde chegamos...gosto da imagem da flor rompendo o asfalto, acho que boa parte de nossas vidas vivemos assim, mas não percebemos. As palavras de Drummond fazem minha vida com mais sentido, com mais dor, mas com muito mais amor. Obrigado querida amiga Tais. Carinho respeito e abraço.

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  4. Jair,
    Nós brasileiros, povo tão sofrido pelas injustiças sociais, pelo preconceito, pelos políticos que destroem o que constroem os nossos trabalhadores, a duras penas, temos um Drummond para compensar esse caos, com a sua poesia grandiosa e ao mesmo tempo tão próxima de todos, cantando o que todos levam em seus corações, tanto de dor como de alegria. Salve Drummond, salve nossos grandes poetas: um Manoel Bandeira, um João Cabral de Melo Neto. E tantos outros.
    Parabéns, amigo Jair, pela excelente postagem.
    Um grande abraço.

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    1. Salve, salve dr Pedro, nossos poetas, escritores, amantes da palavra, criadores de histórias e poemas, como os que encontro em teu blog Veredas. Gosto de dizer que a poesia salvará o mundo, e Drummond estará na frente, com um estandarte "cantando o que todos levam em seus corações, tanto de dor como de alegria". Obrigado por tão poético e realista e animador comentário, obrigado.

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