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Havia sol. Espiou por uma fresta e voltou a enrolar-se nos cobertores e edredons que parecia ninho de uma ave pré-histórica. Podia sentir o vento que batia na janela, alguns gritos de criança ao longe, talvez indo para a escola que havia ali perto...Há muito não saia fora do patio, onde a vegetação começava a tomar conta, a grama outrora verde e bem cortada, agora dividia espaço com as pedras que formavam o caminho do portão até sua casa, e as ervas daninhas que pareciam sentir-se a vontade, esparramando-se pelo terreno, algumas ousando a subir as paredes da casa. A despensa estava ficando vazia, precisa fazer compras, senão estaria caçando ratos ou sendo caçado por eles. Fazia dias que graças ao muro alto na parte da frente, não conseguia ver ninguém, isso o aliviava e o mantinha calmo, pois sempre na presença de outros seres humanos, sua autoconfiança desaparecia e um estranho estado entre euforia e choro, fazendo com que as pessoas se afastassem. Seria ele um louco ? Havia sol. Afastou o sofá que tinha mania de colocar na porta, então colocou primeiro um braço, depois uma perna, a outra, outro braço, estava na rua. Fechou os olhos. Havia sol. Ouviu vozes, eram os vizinhos laterais nas suas lidas que ele sabia bem de cor. Olhou para o lado e estranhou a ausência daquele vulto que sempre o espreitava, chegando a sentir raiva por vezes, mas hoje ao deparar-se com sua ausência, sentiu um estranho vazio. Colocou a mão no peito, mas o coração continuava a bater...pensou que o coração do vulto tivesse parado, talvez sim... lembra agora ter ouvido barulho de sirene, estava tão próximo que pensou que fazia parte de seu sonho, daí lembrou que há muito não sonhava. Voltou para dentro de casa, fechando a porta, encostando o sofá e tapando com um pano o fresta por onde via se havia sol ou vulto.